No dia 5 de Março saio do meu quarto em Maputo e mergulho no calor que encosta de imediato uma gota à pele, que apenas me acena uns segundos até ser expulsa pela brisa fresca do recém-ligado ar-condicionado. Ligo a televisão e falam-me do Jaime Nogueira Pinto. Que não o deixaram falar. Que aquela malta de esquerda toda progressista, porreira, intelectual, não o deixou falar. Porquê? Não gostavam das ideias dele. “Putos do caralho” é o meu primeiro pensamento. Não os queria julgar, o pensamento surgiu-me. É uma coisa que nem sempre consigo evitar – estes pensamentos, ideias e juízos que me surgem na mente quando vejo algo que me repugna. Mas a seguir a estes conceitos que me surgem bem que podem haver outros – as acções. Essas consigo evitar. Consigo parar para questionar que direito tenho eu de estabelecer juízos de valor sobre outra pessoa que não conheço. Fico-me então pelo diálogo e juízos, esses havendo, apenas pelas atitudes do outro. Isto foi algo que não aconteceu com aquela malta que não deixou o Jaime Nogueira Pinto falar. Não sei se com medo das balas que da sua boca poderiam sair, não sei se contaminados com aquela doença que tantas vezes assola tantas almas – aquelas que entram num grupo moderadamente inteligentes e, no curso de uma conversa ou quatro saem estúpidas. Bem-intencionadas? Imagino que sim. Mas o que posso fazer das suas boas intenções é para mim tanto quanto eles acham que podem fazer das ideias do Jaime Nogueira Pinto.
O que estas pessoas – estas, que não permitem outra pessoa falar por discordar das suas ideias, não todo um grupo de esquerda – não percebem é que, sem querer, estão a cair no ridículo que criticam. Estas pessoas insurgem-se contra uma suposta intolerância sendo, elas próprias, completamente intolerantes. Estas que assassinam os direitos que os seus antepassados, tanto políticos como biológicos, conquistaram com esforço. Contaminam-se uns aos outros com a ideia daquilo que é correcto e, qual cruzado, não permitem mais nada.
Não é este o caminho.
Nem sempre conseguindo, gosto de partir para qualquer conversa, ou interacção, com o pressuposto de que posso estar errado. Só sei o que me foram passando, e quem mo passou pode também incorrer em constantes falácias. Tento combater argumentos fúteis com argumentos melhores ou, quando necessário, dados estatísticos.
Uma vez, noite dentro, em Budapeste, conheci alguém que negava o holocausto. Sem conseguir bem perceber como lidar com tal informação, vi a conversa acabar pois o meu camarada australiano confessou-me a necessidade de rebentar a boca ao húngaro que o dizia. Na altura pensei que, por mais que queiramos ouvir, há uma linha a traçar. Hoje em dia não penso assim. Não acho que faça sentido ser ilegal negar o holocausto na Alemanha, como é, hoje e há muito tempo. Estamos a impor, não uma moralidade, mas a manifestação da mesma. E como podemos chegar a alguém, tentar aproximá-los da nossa verdade, se não lhes permitimos que connosco a partilhe? Pode dizer-se que esse tipo de pessoa bem que se estará a marimbar para a nossa realidade, é certo. Mas, enquanto ser humano que é, merece, no mínimo, o nosso esforço. Por ele, e por outros que possam sofrer pelas suas ideias. Poder-se-á dizer também que, proibindo, evitamos que as difundam. E eu aqui assumo, tomando responsabilidade pela assunção e admitindo poder estar errado, que não é uma lei que proíbe a sua subversiva difusão. Acredito que as pessoas tenham o direito, tanto de serem louvadas pelas suas brilhantes ideias, como de se expor ao ridículo por outras. Depois disto, se alguém não quiser participar numa palestra, ou dar um gosto no Facebook, muito bem. Mas até aqui, tem de haver espaço para se poderem difundir as ideias.
O curioso é que, provavelmente, se no dia anterior à palestra que foi cancelada, eu encontrasse qualquer um dos manifestantes que a proibiu, eu sentar-me-ia à mesa com eles e, entre cervejas e tremoços, provavelmente concordaria com várias das suas ideias.
O coerente é que hoje, certamente, depois de reprovar as suas atitudes, sentar-me-ia com eles à mesa do mesmo modo, para educar ou ser educado.
One thought on “A Intolerância”
Continua com essa visão do mundo séria e sóbria, ainda que acompanhada com umas cervejas. Só há uma forma de tratar as coisas: é falando e ouvindo sobre elas. Só assim se combate a ignorância e intolerância e só assim se caminha rumo à luz. Um abraço amigo.