Era impossível não reparar nela. Não estava perto de mim, não estava longe. Longe na emoção, perto no desejo. Perto no destino, longe na origem.
Estava sentada apenas duas filas à minha frente. Tal como eu, lia, para fazer esta viagem do Porto para Braga passar um pouco mais rápido. Estava de frente para mim, e apoiava seu cotovelo na beira da janela, brincando com a mão no cabelo. Este, longo e escuro, ia brincando também com ela, alternando entre penteados desalinhados. Dançavam. Seu cabelo recebia sua mão e deixava-se inundar, modificar pela vontade desta. Ora totalmente virado para a direita, ora para a esquerda, ora de risco ao meio…
Suas sobrancelhas eram finas e levantavam-se expressivamente vez por vez, consoante, supunha, o que lia no seu caderno. Seu nariz era ele também fino e delicado, e apontava para uns lábios não muito grandes que falavam baixinho as palavras que os olhos iam vendo. E os olhos… esses… (porque não guardar o melhor para o fim?) Seus olhos, que calmamente saltitavam de linha em linha, eram castanhos e prometedores. Diziam mais do que queriam e inspiravam calma, mas ao mesmo tempo desafio. Como que diziam: “Algum dia tens o que eu preciso?!”– e, ao mesmo tempo: “Vem tomar conta de mim.” Eu não escolhia nenhuma. Agradavam-me as duas. Agradava-me o desafio da primeira, que mais tarde me levaria ao conforto da segunda.
Quando estava calada, sem portanto fazer seus lábios acompanhar o que lia, mesmo aí estes não se encontravam, ficando separados por uns centímetros e deixando-me adivinhar uns alvos dentes que sem querer imagino a morder meu lábio inferior. Digo-me para ter calma, a viagem é uma criança, e a noite nem isso o é ainda.
Tinha uma blusa azul, com um decote grande, mas não exagerado. Nada nela era exagerado. O cabelo longo, mas não demais, escuro, mas não demais, as sobrancelhas finas, mas não demais. Dava-me a impressão de ter sido intensamente estudada, desenhada, por uma espécie de artista, que queria oferecer ao mundo o que o próprio mundo tinha de melhor, tudo numa pessoa. Idealizações… tantas faço, como adoro.
Subitamente, fecha os olhos. Fico assim, um pouco mais perto de si. Espero que durma, quero sentir, ainda que só com um observador e cuidadoso olhar, a calma no seu rosto, seu peito a encher-se devagarinho, a esvaziar-se devagarinho. Cruza as pernas e apoia-se no braço, que por sua vez se apoia na janela. Ao seu lado repousa uma pasta académica com alguns cadernos. Estudante. Procuro contacto visual mas não consigo, insiste não olhar para mim, permanecendo eu, pelo menos por agora, como apenas mais um anónimo, mais um no mar desta tanta gente.
E assim permaneceria… Sairíamos do comboio, eu procuraria mais uma vez, calmamente, que olhasse para mim, não aconteceria. Eu convencer-me-ia que simplesmente não me tinha visto, não podendo sentir por mim a atracção que por ela senti. Eu, em mais um exercício de auto convencimento sem sentido, dir-me-ia que tinha sido melhor assim, guardar aquela imagem simplesmente na minha mente, imaculada, intocável. Voltaria costas, e voltaria para casa, para junto da minha mulher.