Textos

Aprisionado

Começo a sentir-me um pouco aprisionado. Não sei bem o que é… não sei se começo a deixar de viajar e começo apenas a viver, não sei se são saudades das vilas e de pedalar com mais frequência. Tenho saltado de cidade em cidade e começo a sentir-me cansado disso, acho. Penso nas minhas rodas, naquelas estradas na floresta, e no quanto detestava pedalar naquela lama, mas penso nisso com saudade, e parece que foi há milhares de anos, noutra viagem, noutra VIDA. Há muito que já aconteceu e aparece agora diante de mim, fazendo-me comparar o que tive com o que tenho. Comparo as palhotas com os prédios, os rios com os esgotos a céu aberto, a terra com o alcatrão, os sorrisos com a suspeita.

Sinto-me ambivalente na Nigéria. Tenho gostado de cá estar mas… está a ser difícil libertar-me de tudo o que me foi dito ao longo dos tempos e, apesar de estar apenas no meu primeiro pouso neste imenso país, tenho dificuldade em imaginar os dias vindouros com aquela harmonia do campismo e da albergaria espontâneos. Ia dizer que às vezes preferia ser mais ignorante. Mas isso seria uma suposição de que “saber” que a Nigéria é perigosa é informação quando pode, simplesmente, ser algo que me desvia da realidade, e talvez a maior sensatez seja não saber nada de nada. Só não sabendo nada de nada, posso estar livre, sinto. Sabendo que é perigosa deixa-me um pouco ansioso em relação às minhas possibilidades. E sabendo que não é pode deixar-me incauto. Esta capacidade humana de reter com muito mais facilidade os eventos negativos do que os positivos deixa-me sempre baralhado. Percebo a vantagem evolutiva que isso terá sido, numa altura em que os perigos abundavam e a sobrevivência ia-se revelando difícil. Hoje os tempos são outros mas os nossos genes são os mesmos. Temos dificuldade em relativizar e em usar o milagre da estatística.

Desde os primeiros momentos em que comecei a candidatar-me ao visto nigeriano que as pessoas desataram a lançar-me os mais variados avisos em relação ao ébola. “Agora é a sério”, “Era melhor interromper”, “Não faz sentido pores em risco a tua saúde por uma viagem”, diziam-me. Porque viram na televisão que havia ébola na Nigéria. E não consideram que morreram quatro pessoas há algumas semanas, num país com cento e oitenta milhões de pessoas. Já passei pela Guiné e pela Libéria, países com uma população muito menos densa e onde morreu mais gente, e os avisos apareceram com muito menor frequência. É claro que, mesmo hoje em dia, numa altura em que é mais fácil sobreviver, há avisos que fazem sentido. Mas são poucos. Acho que a maior parte das pessoas deixa-se levar pelo medo e consegue, com impecabilidade, não viver grande coisa.

E é um pouco por isso que não sei bem como me sentir ou o que fazer neste país. Quero liberdade, quero andamento. Mas estou preso em Lagos à espera do Wilson, que quer andar comigo a dar entrevistas nos jornais e visitar os presidentes dos estados por onde vamos passando. Vai ser uma experiência diferente mas que me vai deixar saudoso da estrada aberta, suponho. Ao mesmo tempo, tenho receio de que acabe por ser demasiado protegido, deixando pouco espaço para o improviso e o caos. Rio-me… o Wilson contactou as autoridades de vários sítios, o Ministério do Turismo e afins… e rio-me porque este tipo de protecção é algo que muita gente adoraria ter, atravessando a Nigéria de bicicleta mas eu, apesar de não a rejeitar nem a receber com desagrado, sinto-me um chisco preso, e sinto que isso poderá fazer com que eu não conheça partes da verdadeira Nigéria como quero conhecer. Não, não acho que ser assaltado tem de fazer parte da experiência. Mas acho que ir remando sem saber o que há por debaixo da água é mais aquilo que procuro.

Não gosto muito, também, de ter tudo planeado. Mas bem, por ora deixar-me-ei ir, tendo em mente que talvez exagere em relação à estrutura que me aguarda.

11h28, 3ª, 9 de Setembro de 2014
Lagos, Nigéria

Leave a Reply

Your e-mail address will not be published. Required fields are marked *