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Até Puerto Viejo, Costa Rica

Vou aceitando estas mudanças nos sentimentos e estilos do que vai acontecendo nesta viagem abertamente. Agora estou a ouvir Pinback deitado numa rede. Tenho os calções molhados, e tenho uma cama que já me recebe há três noites, ali ao lado. À minha esquerda e à minha frente dormem dois grandes e jovens Rottweiler. Lá ao fundo, como que a meu Noroeste, a casa-mãe desta família americana que me recebeu. O topo de madeira, onde dormem os pais, a base de cimento, onde temos jantado. Tem todo um relvado com árvores e plantas de folha gigante e uns caminhos de pedra pelo meio que sempre anunciam a chegada de alguém.

A minha última noite em Bocas del Toro não foi fácil. Fui ficando pelo Mamallena Hostel à espera que parasse de chover, mas não parava. Alguns viajantes populavam o sítio, lendo, outros jogando bilhar. O ambiente era calmo, não muito convidativo a nada de especial. Dei uma corrida ao supermercado e comprei um pacotinho de bolachas para o jantar. Depois outra corrida até à casa onde ia ficar e já lá cheguei todo molhado. A olhar para a minha tenda tive pena das minhas circunstâncias e mandei um “Olá?” pela janela para poder pedir para montar a tenda no alpendre. Ninguém disse nada e estava já a fechar-me dentro do meu pouso para as próximas horas quando apareceu um senhor a dizer precisamente para mudar a tenda de sítio. Menos mal.

Molhei-me mais um bocado com estas mudanças, mas lá voltei a montar a minha casinha. Sentei-me dentro dela, tirei, com dificuldade, as calças de ganga que, por estarem molhadas, se me colavam à pele, a t-shirt igualmente, e estendi-me em cima do saco-cama, molhado de um lado. Li um bocado, tentei fechar os olhos. A chuva ia aumentando de intensidade e eu não estava muito satisfeito por estar ali.

Fui abrindo os olhos de vez em quando, a meio da noite enfiei-me dentro do saco-cama, e acordei às oito e pico. Sacudir a tenda, arrumar a mala e vestir a roupa do dia anterior. Secava mais depressa em mim do que na mochila. Ia-me embora dali. Não me apetecia estar numa ilha cuja atracção era a praia quando estava sempre a chover.

Quando cheguei ao cais, ao meter a mão no bolso direito das calças apercebi-me que não tinha os meus cento e cinquenta dólares. Entrei em sentido de imediato. Abri a tenda, o saco-cama, mas nada. Não podia ser. Para poupar dez dólares no albergue, teria eu perdido cento e cinquenta? Deixei a mochila grande de lado e fui num instante à casa onde dormira a ver se estava lá perdido. Nada. Sorri com esta ironia.

Levantei duzentos dólares, voltei ao cais, comprei o meu bilhete, entrei no barco às onze e meia, voltei a sair porque a polícia veio dizer que não havia condições, depois voltei a entrar quando a chuva abrandou. Uma vez em Almirante perguntei a uns rapazes em que direcção deveria caminhar para boleiar e segui caminho. Até à fronteira podia apanhar dois autocarros diferentes totalizando uns dois ou três euros. Já estava naquele estado de espírito em que nem tentado me sentia. Caminhei meia horita até que vi um camião parar à frente de uma loja chinesa. O condutor saiu com um carregador de isqueiro e quando lhe perguntei se ia na direcção de Changuinola disse que sim. Quando me deixou chovia. Meti a mochila pequena à frente, a capa da chuva sobre ambos e depois a mochila grande atrás com a sua própria protecção. Caminhei vinte minutos, parei para um prato de arroz com lentilhas e depois caminhei mais vinte onde encontrei um senhor com uma carrinha de caixa aberta que me deixou em Guavito, a vila fronteiriça. Nessa manhã, sabendo que pediam bilhete de saída da Costa Rica, pensava como poderia falsificar um quando me lembrei que o bilhete que servira de prova de saída do Panamá também daria para isto. Assim, munido do meu bilhete de avião lá cheguei ao guichet do lado costa-riquenho. Perguntou-me a profissão e foi isso. Tal como no Panamá, não tinha sido realmente necessário mostrar o bilhete.

Estava na Costa Rica. Como muitas vilas fronteiriças aquela parecia uma em que uma data de gente está à espera. De transporte, de turistas para transportar, de alguém em quem pousar os olhos, qualquer coisa. Há um clima suspenso no ar e uma estrada única, rumo a onde queremos ir. Rejeitei as ofertas de táxis e autocarros e comecei a caminhar. Estava calor, eu ia cheirando progressivamente pior, a roupa ia colando à pele. Cheguei ao fim da vila, acenei a uns carros mas nada. Um parou mas como não tinha dinheiro de repente só iam ali a duzentos metros. Outros faziam o gesto de dinheiro com a mão. Lembrando-me de quando andara à boleia pela Roménia e pela Moldávia, e de como a cultura boleiante pode mudar radicalmente do outro lado da fronteira, temi um pouco. Na Roménia era costume contribuir-se mas aceitava-se que não se fizesse. Na Moldávia era impreterível, pois os carros particulares funcionavam como táxis. Olhei para uma placa e vi que Finca, outra localidade, era a dois quilómetros dali. Meia hora. Tudo bem, decidi tentar. Fui caminhando e virando-me para trás com o polegar da mão direita, e a mão esquerda a aproximar o mesmo dedo do indicador. Se me levassem só um pouquinho era bom que chegasse.

Até que parou uma carrinha de caixa aberta. O condutor era um de meia-idade, cabelo grisalho, e a ocupante uma nicaraguense, vim a saber, mas de indumentária e genética totalmente africana. “Tienes plata?” perguntou o condutor. Disse que não tinha dinheiro para transporte e ele aceitou levar-me uns vinte quilómetros, desde que me agachasse na caixa aberta. Parecia-me óptimo. Subi, deitei-me com a cabeça apoiada numa roda suplente e fui vendo o mundo desaparecer de mim. Quando parámos saltei fora e a senhora disse-me que ele era um táxi, e ela tinha-o contractado para ir até Puerto Viejo… e eu podia ir também! Agradeci-lhe quinze vezes. Estava safo. Tinha boleia garantida até onde, tudo indicava, tinha guarda garantida. Aquela peça de mobília que inventámos há séculos… uma… cama! O mundo continuou a desaparecer para dar lugar a si mesmo e ia vendo a floresta densa e alta com árvores de copa estranhamente pequena para as alturas que conseguiam. Como se em vez de plano o terreno fosse radicalmente acidentado e cada uma tivesse quase o seu pequeno monte. A estrada era abraçada por uma densidade de verde superior à do Panamá e percebi que… era exactamente o que esperava. Percebo agora que, apesar de viajar praticamente incessantemente na minha imaginação, não costumo ter uma ideia clara acerca do que espero de determinado país. É como se a minha mente me fizesse o favor de se bloquear de ideias ou aspirações para que assim tudo possa ser uma pequena surpresa, seja ela a beleza do que me espera no Vale Hunza, no Paquistão, ou o stresse do Líbano.

Puerto Viejo parece, ao mesmo tempo, que foi descoberto por toda a gente e por ninguém. Naquilo que se pode chamar de centro temos uma estrada que chega ao mar e depois segue para Sul. Essa estrada desdobra-se uma vez à volta de um quarteirão para Norte, e um pouco para dentro e vai-se ficando. Continua, claro, mas por estradas de terra que estão isoladas, algures. A estrada principal tem de cada lado restaurantes, bares, albergues e lojas de surfe mas não só acaba pronto como estes estabelecimentos têm um certo ar de locais. Não há hotéis imaculados à beira-praia nem restaurantes onde os empregados usem avental e camisa branca. Passam rastas na rua com frequência e muitos deles são turistas e os estrangeiros mais velhos, ou vivem por ali, ou andam a ver pássaros, de binóculos ao pescoço. Abrigados pela descriminalização fuma-se erva na rua e a praia não é muito ambiciosa, não se estendendo mais que alguns metros até acabar em ondas cinzentas que reflectem a estranha época chuvosa que iam vivendo.

Pedi net num restaurante e enviei uma mensagem à Meg. Fui dar uma volta, assentei num bar, pedi o que mais barato tinham, um café sem leite, por um dólar, e enviei outra e fui esperando. A noite abateu-se, passaram duas horas e nada. Foi uma boa ideia ligar-lhe. Quando ouvi o seu “Hello” entusiasmado flori um pouco. Disse-lhe onde estava. “Hum…” disse. “Eu vou buscar-te, não saias daí.” E assim respirei fundo e senti um peso sair-me dos ombros. Faço sempre por escrever da forma mais sincera possível apesar de algumas vezes, como agora mesmo, poder sentir uma espécie de vergonha ou receio de que me interpretem mal. A verdade é que… será que eu tinha passado assim tão mal? Será que tinha exagerado? A noite anterior tinha acampado no alpendre de uma família numa ilha de praia onde só chovia, dormindo meio molhado. A noite anterior a essa tinha acampado à chuva fora de um albergue. A noite anterior passei-a a caminho de um vulcão para ver um mar de nuvens a sete palmos dos olhos e a noite anterior acampara noutro alpedre de outra famiília em Chiriqui. Não me parece terrível, agora que penso nisso. Mas nós sentimo-nos como nos sentimos. Não controlei sentir-me triste, tampouco investi muito tempo nisso. Sentia-me sozinho e sem conforto nenhum. Podia controlar, isso sim, o que fazer com o que sentia, e foi o que fiz. Perceber que, apesar de tudo, tinha total controlo sobre o que se estava a passar. Todas as minhas pequenas maleitas, salvo, quiçá, estar sozinho, tinham resolução. Eu simplesmente optei por manter-me fiel ao meu princípio inicial, nem que daí adviessem sentimentos adversos.

Assim, por ter passado um bocado mal nos dias anteriores, quando, não só ouvi a voz da Meg, mas também essa voz disse que me ia buscar, senti-me aliviado. Esperei em pulgas frente ao Bikini Hostel e vi-a aparecer no seu Toyota maroon. “What’s maroon?” “Oh, it’s like brown…

“Hey, olá! Deixa-me pedir desculpa de antemão se trago comigo um aroma menos prazeroso, vou tratar disso mal possa!”

“Não te preocupes, eu tenho dois filhos” respondeu, sorrindo. E entrei assim na família Williams, uma interessante família com quem passaria quatro agradáveis dias. A Meg tinha os seus cinquenta e tal. Cabelo curto, entre o castanho e o grisalho, olhos verdes e era magra. “Então, não sei que é que a Liliana te disse sobre nós… mas nós, eu e Phil, o meu marido, há cinco anos decidimos ir viajar. Foi a primeira vez que saímos dos Estados Unidos de mochila às costas, a ficar em albergues em vez de hotéis e foi uma viagem que nos mostrou um pouco o tipo de VIDA diferente que podíamos ter. Ao longo do caminho íamos procurando um sítio para onde nos pudessemos mudar. As voltámos aos Estados Unidos, comprámos uma quinta no Tennessee, e isso foi uma má ideia… vendemo-la passado pouco tempo e… olha, nós tínhamos gostado muito de Puerto Viejo e pareceu-nos um bom sítio onde assentar. E tu?” perguntou, estávamos a abandonar a estrada de alcatrão e a entrar por uma de terra e pedrinhas mato adentro. Falei-lhe um pouco acerca desta pessoa que vou sendo e chegámos a casa. A pedido da Meg saí do carro, abri os dois grandes portões de madeira e vi a propriedade que me receberia para os próximos dias. Mostrou-me os meus aposentos, fizemos a cama, e quando perguntou se queria ir conhecer o pessoal pedi para tomar banho antes.

Entrei na casa e vi, naquele rés-do-chão, uma ampla cozinha separada de uma sala-de-estar com pinta de ser pouco usada por um largo balcão. Era tudo feito de madeira salvo as imensas quadradas janelinhas que preenchiam quase toda a parede. “Dantes isto era aberto, não tinha nada quando chegámos, só a parte de cima” disse-me o Phil, com um sotaque do Sul que, apercebi-me, só conhecia de filmes. Era um homem bem constituído, com uma ligeira pança. Metade das vezes que cruzei os meus olhos com os deles o seu olhar via-me melhorado por um par de lentes numa armação metálica. Trocámos alguma conversa de circunstância, eu, o Phil e a Meg, comi umas sandes de queijo grelhado e retirei-me quando achei que o podia fazer sem parecer que só tinha lá ido comer qualquer coisa.

Quando conhecemos alguém tentámos encontrar eventuais pontes que nos usam. Às vezes é futebol, outras vezes cinema, outras questões morais e éticas, políticas, caça, um certo gosto pela filatelia ou… por viajar. Usámo-lo para nós mesmos mas também, consciente ou insconscientemente, para encontrar pontes entre pessoas que já as têm connosco e outras que chegaram agora e têm ainda só as grandes colunas rio fora onde assentará um entendimento mútuo. Assim, a Meg falaram-me do Ben, um dos seus filhos que, ao que parecia, também retirava algum prazer de ver sítios que nunca tinha visto. Ele estava a ficar no quarto ao lado do meu e cruzámo-nos quando ele ia a algum lado e eu chegava. Estávamos em pé, e quando nos apresentámos a alguém dificilmente nos sentamos de imediato, sob o risco de estarmos a aprisionar o nosso interlocutor. Vamos falando e, lentamento, aproximando-nos de um banco. Se o banco for alto sentamo-nos assim só meio de lado, migrando lentamente até, sem querer, estarmos já confortáveis na cavaqueira. Foi mais ou menos isso que aconteceu comigo e com o Ben. Num momento partilhávamos as nossas deambulações, noutro já as promovíamos um ao outro, entrando em domínios da existência, da falta dela, daquilo que nos pode esperar ou de tudo o que nunca mais. Houve ali um inesperado e agradável entendimento entre mim e aquele americano de vinte e quatro anos de voz nasalada como tantos os seus compatriotas, de cabelo castanho curto com uma mancha loura na nuca, de nascença, e quando, ao nos desejarmos uma boa noite, ele desviou-se da minha mão e preferiu um abraço senti o tipo de pessoa que era e percebi que seria mais um raio de sol que se instalaria directamente no meu coração que ia procurando um pouco de calor.

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