Desalinho [2009]Ficção

Como Me Sinto

A

            Como me sinto… Dizem-me ter dado um passo importante, fulcral, vital na minha VIDA, mas o que mais quero, a cada segundo que passa, é ter o que tinha semanas antes. O que me dizem agarra-se aos meus ouvidos com toda a força pedindo, ora com jeitinho, ora violentamente, para entrar. As palavras que ouço descolam-se facilmente de mim, fruto do desalinho que encontram entre si e o meu ser. Quero deixá-las entrar, e puxo a porta com toda a força que tenho, mas sinto cada esforço como um movimento em vão. Cansa-me, como me cansa. A porta que quero abrir é pesada e está enferrujada, mexendo-se apenas uns centímetros quando a queria escancarada. Desistir do que desisti manifesta-se tão difícil como nadar com um colete de ferro. Sinto no corpo o pedido das benzodiazepinas, e resisto contra a vontade de ceder pela enésima vez. Vou tentando nadar, mas as braçadas são pesadas, e a necessidade de, com um aceno, ao mesmo tempo pedir ajuda torna tudo complicado e inconsequente. Desistir desistindo é difícil. Ter a ajuda que vou tendo a cada dia ajuda, mas ao mesmo tempo deixa-me a sentir-me como um extraterrestre no meio dos restantes residentes… que batalham com os seus problemas psicológicos, quando eu apenas os tenho em lista de espera. Vejo B., minha “irmã mais velha” cheia de força, de energia e boa disposição e, mais uma vez, os sentimentos contraditórios me recordam da sua existência… vejo-a como o personificar duma meta, duma possibilidade, um olhar para algo em que me posso tornar… mas ao mesmo tempo sinto a distância galáctica entre os nossos estados tão assustadoramente grande… grande demais, de tal forma que penso ser, para mim, simplesmente impossível…

            B

         Como me sinto… ou como me sentia, já que neste momento não faço ideia. Ou não quero fazer ideia, face à notória evidência de que agora me sinto pior que há pouco tempo atrás. Toda a gente gabava o meu progresso, e eu sorria, por dentro e por fora, contente com a constatação daquilo que sentia mudar em mim. Hoje, toda a gente continua a gabar o meu progresso, e eu continuo a sorrir, mas apenas o faço para ser visto. Esta mudança, que no fundo nada mais foi, quem sabe, que um neutralizar da errónea ideia antes tida, passou-se nas últimas semanas a uma velocidade, não sei se lenta, se veloz, mas definitivamente sub-reptícia. A verdade é que, quando vi A. entrar na Comunidade Terapêutica, vi-me a mim mesma, meses antes… vi aquela imagem de mim que julgava esquecida e que sufoquei num qualquer canto da minha memória… Magra, muito magra, os olhos a querer fechar a toda a hora, o silêncio como carrasco e o nulo como constante. O corpo já a não necessitar de substâncias mas ainda assim a pedi-las. A mente, pobre mente, completamente às escuras, sem saber o que fazer. Falo com A., vezes sem conta, tentando incentivá-la e ajudá-la a abandonar esse funcionamento. Quem sabe mais para me ajudar a mim, mas o seu olhar vazio não me escuta, e só me apetece gritar-lhe aos ouvidos, garantindo assim a sua atenção. Ou tentando, já que não consigo ter garantias de si. Porém, não deixo transparecer, não sei porquê, esta súbita fraqueza e vulnerabilidade recentemente adquiridas. Talvez admitir, ou falar disto num grupo ou em aconselhamento, seja dar ainda mais um passo atrás… Ouço os meus próprios pensamentos e penso que, eles sim, representam, não um passo atrás, mas que a realidade é que não dei tantos em frente.

            C

         Depois do almoço, como todos os dias, retiramo-nos para fumar um cigarro. Com a Primavera ao virar da esquina e o Inverno esquecido, os sorrisos são mais abertos e as gargalhadas mais sonoras. Mas esta é estranhamente sonora. Não sei se é o nível, o tom, o que é… mas apenas confirma o que já há algum tempo imaginava. Quinze anos de toxicodependência, mais outros quinze, já livre, de trabalho com toxicodependentes, acabam por nos dotar com algumas características não raramente infalíveis. Os residentes voltam para dentro, e B., já com o olhar descansado, e por isso mesmo reflexivo e distante, deixa-se ficar, iniciando o seu segundo cigarro, sentada a admirar a sua caneca de café.

            – Podes baixar a guarda agora…. – digo, sentando-me a seu lado. O seu olhar é de surpresa, e nasce um sorriso amarelo.

            – Como? – pergunta.

            – Sei como te sentes. Já passei por isso, não precisas de esconder. Nem de mim, nem de ninguém, e muito especialmente, de ti – tenta interromper, imagino para dizer que não sabe do que estou a falar, mas o meu olhar pede mais um minuto de antena – Sabes… não foste a única a perceber as semelhanças entre ti e A. Assusta, não assusta? – volta a assumir a postura que assumira quando se julgara sozinha. O seu verdadeiro eu tem permissão para respirar uns minutos.

            – O que é que faço? – pergunta, perdida.

            – O que é que tens feito?

         – Nada. não percebo isto que se está a passar. É frustrante! Pensava que estava num lugar comigo completamente diferente! E agora parece que me vejo… ao espelho, de cada vez que olho para A. E… sinto-me a regredir.

         – Pois eu sinto-te progredir…

         – Como assim? – pergunta-me, notoriamente sem saber o que quero dizer.

            – Se aprendi alguma coisa, em trinta anos a lidar com drogas, é que simplesmente não existe algo como um percurso perfeito em recuperação… e quando tudo corre bem, sem mácula, com um desempenho notável… acho que quer dizer que tudo vai mal. Porque se estás aqui, é porque há merda aí dentro… merda de que precisas de falar, de deitar cá para fora! E a razão pela qual digo que acho que estás a progredir é que começaste a sentir, começaste… a ver-te na minha perspectiva…

         B

         Ficamos a falar mais uns minutos, até que tive de ir lavar o chão dos corredores. C. surpreendeu-me duma maneira que não achava possível. Como é possível sermos tão transparentes quando julgamos que estamos a ludibriar toda a gente?… Odiei-o por me ver tão bem, mas na verdade… disse-me o que eu já sabia, e fez-me ver que o progresso, a minha recuperação, não está em querer tudo perfeito dentro de mim, mas aceitar o que não está… tentar melhorar e conseguir… falhar e aprender a lidar com isso…

            Como me sinto. Triste. Triste pelo tempo perdido a tentar mostrar aos outros uma imagem minha que não era real. Mas fe… mas contente por o ter percebido a tempo. E feliz por estar agora numa posição tão melhor para ajudar A., mostrando-lhe que o meu percurso também é difícil.

            Sim… Talvez partilhando as fraquezas seja mesmo a melhor maneira de descobrirmos os nossos pontos fortes…

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