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Desânimo em Bocas del Toro

Os altos e baixos continuam. Apesar de haver grande festa em Boquete e de estar mesmo ao lado de um bar com música ao vivo consegui dormir. Lembro-me de acordar com barulho e pensar que ainda não tinha dormido nada e ver que eram quatro e meia. A festa é duradoura.

Acordei às oito e tal, sacudi a tenda bem sacudida, embrulhei-a, fiz a mala, fiz uma panqueca com a massa que o albergue disponibilizava para os clientes e saí. Chovia mas a gasolineira era já ali. Quando lá cheguei vi que não havia muitos carros, e os poucos que havia não iam para onde queria. Inundado por um sentimento de quem nunca andou à boleia e pensa que é suposto ela aparecer em cinco minutos, já estava a vestir a capa da chuva para ir para a estrada esticar o dedo. Enfiei-a e ia pedir ajuda para alguém ma passar por fora da mochila detrás quando parou um jipe. Já agora, podia perguntar-lhes. “Vamos para David, sim. Mas o carro está cheio.” “Posso ir ali no meio, ou até lá atrás, a sério, sem problema!” O senhor hesitou mas aceitou. O carro estava cheio com o pai, o Nico, a esposa, quatro filhos e um sobrinho. Ia para a mala quando ele disse que, se metesse a mochila no meio entre os dois bancos da primeira fila, podia sentar-me nela. Perfeito.

“Vais escrever sobre nós? Somos a família Rosa, não te esqueças!” disse o simpático casal. Vivam numa quinta no quilómetro oito quem vai para o topo do vulcão e tinham uma plantação de tomates que vendiam a supermercados e a pessoas que depois os venderiam em mercados mais pequenos. Eram simpáticos e sorridentes e levaram-me um bom bocado, deixando-me na estrada que ia para Bocas del Toro. Aí só tardei uns dez minutos a entrar para o camião do Molina, um rapaz de vinte e dois anos que tinha ido com o pai buscar o camião que o progenitor agora conduzia à frente. O camião do pai era gigante, maior do que os típicos camiões portugueses, e por causa disso demorámos umas quatro horas a chegar a Almirante, de onde apanharia o barco para Bocas del Toro. Esse mesmo camião era enchido várias vezes por semana até ao topo com plátanos, o negócio da família. Cinquenta mil quilos de cada vez, disse-me o Molina. Pelo caminho pagaram-me o almoço. Conheci o pai dele, um hondurenho escuro, de chapéu, que tinha ido para o Panamá aos dez anos, e comi, pela primeira vez na minha VIDA, tartaruga. Quando me disse que era proibido comer-se tartaruga por estar em vias de extinção senti-me mal, mas já tinha começado. Gostei muito, mas não o volto a fazer.

Adorei o caminho até lá. Pequenos montes verdes, muitas árvores, bananeiras, palmeiras, e a maior parte das casas construídas a um metro e meio do chão, aguentadas por fortes vigas de madeira. E depois o mar, que foi aparecendo, com ilhotas a emergirem a medo para meu agrado.

Deixou-me no cais onde se apanha o barco, comprei o meu bilhete de cinco dólares, esperei uma horita e entrei na lancha. Do cais via casinhas de madeira sobre a água, outras à borda da mesma, e a caminho iam aparecendo ocasionais pescadores nos seus barquinhos. O Miguel, no albergue de quem ficara em Boquete, tinha casa em Bocas del Toro, e na noite anterior, estava já na tenda, enviara-lhe mensagem a perguntar se me podia albergar. Disse que não sabia, depois dir-me-ia, razão pela qual a primeira coisa que fiz quando aterrei foi encontrar internet a ver se me tinha respondido. Nada. Enviei nova mensagem e comecei a andar. Gostei do aparente ambiente da Isla Colón. Não tinha nada a ver com a Playa Venao, era muito maior. Casas coloridas, outras de uma arquitectura colonial, uma praça com duas árvores imponentes. Caminhei direito ao outro albergue que o Miguel tinha aqui na ilha. Nem o vi nem ele respondeu. Fiz um bocado de tempo, mas nada. Tinha de fazer pela VIDA. Segui caminho e encontrei, à minha direita, uma casa do outro lado de uma rede velha, uma senhora muito velha, à porta, sentada, e os seus netos cá fora, a brincar. Perguntei-lhe se podia montar a minha tenda e ela acedeu. Entusiasmado disse-lhe que ia só ver se um amigo meu tinha respondido a uma mensagem minha e já vinha. Fiquei contente. Aquilo era um pedaço de terra, meio enlameado, desabrigado da chuva, mas chegava. Outra das vantagens de viajar assim é que o nosso grau de exigência fica estupidamente baixo. Isso torna-nos mais apreciativos de quando temos algo mais do que o básico. Como sempre, voltando a casa, não ficamos exactamente como quando estávamos em viagem, mas vimos diferentes que chegue. Quero contrariar o mais possível o aparentemente natural aumento do grau de exigência que vem com a idade. Aceito quem quer que venha a ser neste domínio mas, para meu próprio bem, espero que não seja muito diferente do que agora sou.

Vim, fui, o Miguel não tinha dito nada. Estava a meio de montar a minha tenda e apareceu um rapaz mais velho. Informei-o acerca do que estava a fazer, tudo bem, e depois apareceu a esposa dele. Nada feito. “Aqui não se pode… há crianças e um cão…” “Ó… por favor. A sério, já estou a meio, não tenho grandes possibilidades de ir para um albergue. Não vai ter problema comigo, a sério, veja… pode tirar uma fotografia ao meu passaporte…” “Não, aqui não pode ser…” “Mas eu perguntei à sua avó.” “Mas a minha avó não decide…” E foi para dentro. Senti um empurrão para trás. Olhei para o rapaz e pedi para ele me ajudar, entregando-lhe o meu passaporte. Enquanto ele foi lá dentro disse, de mim para mim, “Há sempre alguém…” e logo de seguida “Sempre alguém?, não digas besteiras…” Não gostei de ter dito isso. Porque não é verdade. Não há “sempre alguém”. Sem querer fui aquilo que critico em algumas pessoas – o generalizar pessimisticamente baseado num pequeno revés.

Felizmente a ideia do passaporte deu resultado e acabei por poder ficar.

Estou agora no Hostel Mamallena. Não por causa do Miguel, já desisti da ideia dele, até porque ele viu as minhas mensagens e não disse nada. Preferia um “Não vai dar” a uma ausência de resposta, mas o que eu prefiro não interessa. Sinto-me um pouco desanimado. Começou a chover há duas horas e não pára. Não posso ir a lado nenhum porque se me molho depois não tenho um chuveirinho para tomar banho e um quartinho onde depois me secar. Estou no bar de um albergue a escrever porque não posso passear. Gostava de comprar uma garrafita de rum e sentar-me com algum pessoal mas não me parece viável. Tenho diálogos internos acerca da necessidade de, realmente, ficar acampado à chuva e perco sempre. Não digo que nunca vá pagar para dormir, nem digo sequer que nunca vá pagar para dormir dez dólares ou mais, mas quero resistir ao máximo. Não cheiro muito bem e isso também não é um sentimento muito agradável. Sinto-me sem grandes vontades e um pouco desanimado. Ao mesmo tempo acho interessante como é que cada viagem é tão diferente das outras. Mas hey, estou vivo, estou a viver…

Se o Miguel não me responder desapareço daqui já amanhã. Dá chuva para todos os dias e, através de alguém que segue a minha página, tenho um contacto em Puerto Viejo, a cem quilómetros daqui, que tem… um quarto para mim! Esta vai ser a sétima noite seguida em que não toco numa cama. Pode parecer pouco para a malta do campismo, mas isto tem sido… diferente.

Adorei a tarde que passei, as últimas três horas nem por isso.

Adorava que, como da outra vez em que escrevi na Playa Venao a confessar-me um pouco triste, mal eu fechasse este computador, a minha noite desse uma reviravolta.

19.50, d, 14 Janeiro 2018

Bocas del Toro, Panamá

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