Narrador
Reúno-me todos os dias com alguém. Rio, faço caras tristes, sou simpático, sou antipático, sou um pouco de tudo, de acordo com o que acho que devo ser em determinado momento para gostarem um pouco mais de mim, para reunir um pouco mais de admiração. Quando acordo, acordo já com um enorme olho a observar cada movimento meu. Observa-me e esmaga-me, lembrando-me constantemente do que fazer, de como ser, para que assim consiga desfrutar da minha existência. Claro que nesta busca tão desesperada de ser feliz, sinto-me constantemente cansado. Desapareço entre os segundos, disperso busco uma identidade entre as palavras que me dizem, a imagem que vejo no espelho e os sorrisos que recebo.
O feedback que recebo de toda a gente é o meu guião. Poderia ser aquilo em que eu próprio acredito, o que realmente desejo para mim, mas nada disso é verdade. Os princípios, abandonei-os faz muito tempo, quando percebi que a grande maioria deles me estampava um rótulo de moralista na testa. Daí que procure encontrar nos pseudo-princípios das outras pessoas os meus próprios, tentando manter uma certa coerência impossível de alcançar para o observador mais atento.
Não sei como nem porquê surgiu esta insegurança. Acho que sempre fui assim… E questiono-me, como me questiono. Como conseguem todas as pessoas ser tão infalíveis, ser tão perfeitas, sem sentir o medo esmagador de errar? E o pior… quando erram, erram com graça. Eu, quando erro, nas raras vezes que isso acontece, erro de uma maneira que me faz sentir completamente humilhado, que me faz sentir uma merda e que todo o meu esforço para ser aceite é tão eficaz como construir um castelo de gelo no Equador…
Observador
Apetece-me estar sozinho. Dou um salto ao café, peço algo e perco-me por uns instantes nas pessoas desconhecidas. Demasiados dias tenho passado nesta condição, e começa a surgir em mim o medo de não mais a abandonar. O que fazer para pontapear esta tristeza e sentir algo diferente? Foda-se.
Não sei quanto tempo passa, vejo o Filipe a aparecer. Vem a falar ao telemóvel e traz consigo aquele sorriso de que aparentemente não se consegue livrar. Olho para a mesa, fingindo uma distracção inexistente, focando-me um pouco em odiar o meu amigo de longa data. É injusto, mas acaba por, por vezes, me irritar com a sua constante boa disposição, pois… não sei como é possível. É um porreiraço, sempre na crista da onda, sempre com um sorriso ou uma gargalhada, e isso deixa-me a sentir-me como o mais defeituoso mortal. Nunca o vi mal, vejo-o sempre a planear algo, sempre, ou com alguém, ou à espera de alguém, sempre como aqueles breves dias que por vezes tenho. O que é um dia, uma semana, ou mesmo um mês de alegria quando comparados com toda uma existência? E porque tenho sequer de estabelecer esta comparação?
Certo é que Filipe acaba por me ver, e senta-se comigo. Certo é que, inexplicavelmente, o meu próprio clima, onde me aventurava sem agasalho, subitamente começa a descobrir, e começo a perceber que não tenho de me focar na passageira miséria que me sinto viver, mas que posso escolher, ou pelo menos tentar, sorrir. Quando chego a casa, trago ainda alguma dessa tristeza, mas já não é bem minha, já não sinto que a tenho de agarrar e não deixar cair. Que caralho… Sorrio ao pensar como queria evitar Filipe, alguém que apenas, ainda que sem o querer, me ajudou. Talvez o mundo tenha mesmo de ter destas pessoas, destinadas a serem felizes, e fazer alguém sorrir. Talvez o mundo tenha de ter pessoas que não falham.