Desalinho [2009]Ficção

K.I.S.

            Sinto palavras que quero dizer acumularem-se na minha mente. Aos pontapés lutam por um lugar, por um materializar de tudo o que não sinto, de tudo o que sinto e não quero sentir, de tudo o que não sei nomear… Deixo a tocar uma música qualquer de Zero 7 e saio à rua para fumar um cigarro. O tempo, que merda de tempo… Tento não sair demasiado, fazendo apenas os possíveis para que não me molhe. Vejo a chuva rebentar no chão, misturando-se de certa forma com estranhas gotas de alguma coisa dentro de mim.

            Saio do meu corpo por uns instantes e entro no vendaval que observo, criando uma certa harmonia com os furacões que sinto vasculhar os cantos da minha mente. Vejo-me de braços abertos, imune aos carros que, cansados, passam à minha volta, imune ao frio solitário, imune a tudo menos aos pensamentos de que não me consigo livrar.

            Debaixo dos meus pés o alcatrão que, mais cedo ou mais tarde, me levaria até ti, sejas tu quem fores. Penso quanto tardaria a chegar até ti, se me deitasse a correr o mais rápido que pudesse. Quem sabe, imune fosse eu também ao cansaço, estaria do teu lado mais cedo do que imagino… Quem sabe, se tudo fosse um bocadinho diferente, se cada um de nós fosse um bocadinho diferente nunca teria de deixar de te ver. Quem sabe… quem sabe se eu não fosse bom a escrever não escreveria esta merda que nada me faz senão afundar-me mais na catastrófica inocência do não-saber…

            Sento-me na cama, sento-me na secretária. Penso nas palavras que me disseste e questiono porque será que tudo tem de ser complicado. A inocência do não-saber… a inocência de não saber o que te dizer, de mal saber o que me disseste deixa-me encurralado, fechado num canto algures dentro de mim, sem saída possível senão um terrível silêncio que me assusta mas que me seduz. Repito para o ar as palavras que me ofereceste da última vez que nos vimos, daquela vez em que te devolvi apenas um misterioso e sensual sorriso, que nada mais era que o único disfarce que tinha para devolver, face a minha total ignorância e inabilidade em perceber os teus significados nem sempre precisos.

            Penso no quão estúpido serei, penso se será normal que veja com tanta dificuldade esta empreitada de perceber as mensagens escondidas nos lábios de uma mulher. Dou uma olhada ao meu passado e revejo as vezes em que me deitei acompanhado. Não as consigo contar… Trinta e um anos de existência e um palmo e meio de cara fizeram com que tenha acumulado um número confortável quando partilhado em banais conversas de café. Porém, sinto que, ano após ano, fico cada vez mais estúpido. Já não salto para relações, já não salto para ninguém, porque desta vez quero acertar…

            Desta vez quero acertar e isso faz-me pensar como, tantas vezes no passado pensei ter acertado em cheio, quando estava profundamente errado. Faz-me pensar em como era tão brilhante não pensar, entrando, mergulhando em cada alma leve e descontraidamente, procurando com leviandade uma outra parte de mim que, com um sorriso me dizia para continuar a procurar. Agora quero acertar, e ouço as palavras que me dizem com uma atenção que nem sabia ter. Dou voltas e mais voltas à minha cabeça, dou voltas e mais voltas às frases que me dizes… penso, mais uma vez, se estarei mais estúpido e me estará a escapar o óbvio, apenas para, cedo, perceber que não… simplesmente esta inocência do não-saber manifesta-se tardiamente, fruto de demasiados dias ao sol, de demasiadas fugas de mim mesmo, de demasiadas demasias…

            Sinto-me como um professor que não sabe ler, e isso mata-me por dentro. Sinto que posso escrever o que quiseres acerca do que sinto por ti, sabendo eu que te deslumbrará, mas sinto que não o sei fazer se o quero relacionar com aquilo que sentes por mim… porque não faço ideia… Penso na tua cara e nos gestos que me lançaste, misturo com as tuas palavras e o resultado apresenta-se insolúvel…

            – Alexandra, tudo bem?

         – Tudo óptimo, Luís! E contigo? – responde, do outro lado da invisível linha. Entusiasmo, marasmo? Não sei, mas parece-me entusiasmo… Desde quando sou este conas que questiona um mero cumprimento?

            – Queres ir tomar café?

         Quando se abeira de mim traz consigo a usual atitude mais ou menos indecifrável. Como pode ser algo mais ou menos indecifrável? O seu aroma é o mesmo, o seu tom de voz o mesmo, tudo é o mesmo menos eu que, nervoso, me levanto para a cumprimentar, batendo com a perna na mesa, derrubando uma chávena de café na sua bolsa de pele branca. Tento perceber a sua reacção como nada mais do que aquilo que vejo. Uma expressão de surpresa, seguida de um descontraído sorriso e um levantar de sobrancelhas que me diz que está tudo bem, para não me preocupar.

            Os primeiros minutos passam problematicamente. Quando há tanto que se sente, tanto que se quer dizer, cria-se como que um engarrafamento emocional, funcionando nós apenas em auto-piloto, que nada mais sabe do que falar do tempo, trabalho e, por vezes, no caso das versões mais actualizadas, da última semana. Deixem o auto-piloto a falar de sentimentos e o choque é certo. Contudo, uma vez ultrapassada esta desconfortável congestão, algo mudou. Não sei se Alexandra reparou na minha atrapalhação e decidiu ajudar, ou se eu próprio de repente subi de escalão… ou se a cerveja ajudou… Quem sabe um pouco de tudo.

            – Então, Luís, explica-me lá a tua confusão… – diz-me, quando se volta para mim, depois de pedir um whiskey com seven-up. Apanha-me um pouco de surpresa.

            – Bem, posso dizer-te, desde já, que me sinto confuso em relação ao teu pedido.

         – Não é bem, um pedido, talvez uma… sugestão.

         – Pois, acredito perfeitamente… E, como vês, está à vista a minha confusão. Mas jogos à parte, que queres dizer mesmo? – pergunto, fingindo não perceber o que quer dizer, ou esperando que eu esteja enganado com a minha própria interpretação.

            – Pá… apetece-me dizer-te, sugerir-te, ou mesmo pedir-te para te deixares de merdas, porque sabes muito bem do que estou a falar, mas

         – Repara que estás a dizê-lo sem o dizer – interrompo, a meia voz.

            – … mas vou alinhar e explicar-te direitinho. Ok, não direitinho, mas mais ou menos. Sabes que te vejo como um enigma… Desde que te conheci, ainda que apenas soubesse o teu nome e tu o meu, e nada mais, que sempre te vi a mexeres-te nestes meios como um pássaro no céu. Mas comigo vejo-te muito estranho!

         – Estranho?

         – Sim, estranho. Fazes cara de puto envergonhado sempre que nos encontramos. Isso é o quê? – penso que rumo quero tomar com esta conversa. Vejo duas nítidas e distintas opções. Do lado esquerdo a consequência misteriosa fruto da verdade como antecedente… do lado direito o controlo da conversa pela manifestação da ausência de controlo em relação ao seu tema.

            – Não sei… – parece a opção da direita, mas na verdade é a da esquerda… – Contigo tenho reacções e… sentimentos que não tive dantes, e isso deixa-me um bocado… atarantado, digamos. Talvez isto de não saber o que fazer passe como misterioso, não sei… e repara que estou a ser muito sincero agora, não sei porquê…

         – Pois, estou a ver… – sinto a sua expressão comunicar mais do que ela me quer mostrar. Por uma vez, creio perceber exactamente o que vai dentro de si. Vejo uma certa desilusão… – Engraçado como continuas a ser diferente, mesmo quando pões a nu a razão pela qual tens sido diferente até agora… Gosto! – diz, com força, os olhos brilhantes. Percebo ter errado, afinal, na minha interpretação – Que sentes, então? – começa a fazer-me confusão a conversa, facto que decido partilhar…

            – P’ra ser sincero, sinto-me meio desconfortável com esta conversa e apetece-me mudar de assunto… não que queira mesmo, mas apetece-me, e sinto-me meio estúpido por isso…

         – Porquê?

         – Porque é que me sinto desconfortável com o tema, ou porque é que me sinto estúpido em querer mudá-lo?

         – Ambos.

         – Pá… Sinto-me desconfortável porque, para ser sincero, nunca tive este tipo de conversa com outras mulheres. Não só nunca me senti assim meio desamparado como me senti, ou sinto, contigo, mas também, e especialmente, nunca falei destas m… coisas. Nunca me pus tanto a nu, como dizes, se é que percebes… Sempre foi muito mais fácil manter o assunto em temas superficiais e divertidos, como se… – faço uma pausa, para me organizar um pouco, perante o olhar atento de Alexandra – É assim… se calhar não somos todos tão seguros como gostamos de mostrar que somos. E se mostrarmos apenas aquilo que queremos mostrar, que está sob controlo, talvez possamos manipular melhor a opinião que se forma acerca de nós… – desta feita a pausa que faço não é para me organizar, mas espero, apenas, ouvir a sua opinião. Quando se mantém calada, percebo que não respondi à segunda questão – Sim, claro… e a razão pela qual me sinto estúpido com o facto de querer mudar de assunto é que… talvez ficasse melhor, ou mais confortável, vá lá, por agora, mas isso era só mais uma escapatória, e daí que diga que, ainda que me apeteça, não quero!…

         Quando acordo, na manhã seguinte, ainda não percebo muito bem o que se passou na noite anterior. Levanto o braço de Alexandra, deslizo pelos seus lençóis verdes claros, e vou preparar um café. Tenho alguma dificuldade em perceber como é que, precisamente quando penso que estou a perder toda e qualquer hipótese de alcançar bom porto, a vejo sair da sua cadeira, sentar-se no meu colo e beijar-me. Incrível! E o mais incrível é que o beijo foi terrível! Sentia-me tão à vontade em manifestar o que dentro de mim ia que decidi não parar, e aquele beijo foi a mais simples e crua manifestação da minha surpresa. Eram dentes por todo o lado, baba e sorrisos. Sim, talvez não tenha sido assim tão mau…

            Sinto-me contente e divertido. Depois da conversa de portas abertas que tivemos, passamos para si, e depois para um milhar de temas. Incrível como as coisas podem ser tão simples uma vez que nada se queira ser senão o que realmente se é. Quando me senti perto de a perder, descobri estar errado. E uma vez que descobri o caminho onde me encontrava, nada tinha a fazer senão explorar a nossa compatibilidade da maneira mais natural possível.

            Vejo as palavras que atravessam a minha mente como mais simples. Sinto-me mais organizado e menos desesperado. Interessante. Não sei, nem faço ideia, o que será de nós, mas sei certamente que nunca me senti tão perto de alguém como de si na noite anterior, e nesta manhã, ao acordar. Não memorizo estratégias, não aponto truques. Não penso em nada senão na simplicidade a quem tantas vezes pedi para desaparecer.

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