FilosóficoReflexão

Noé

A menos que agora vás ler o primeiro Daqui Ali, talvez no meu próximo livro de viagens já ande um Kiduzinho por este mundo. E não duvides que a tua eventual curiosidade acerca de que tipo de viagem será esse próximo livro não é maior que a minha.”

in Daqui Ali – De Portugal à África do Sul de Bicicleta [2016]

Excerto escrito em Setembro de 2015.

Estávamos sentados lado a lado, a tarde já ia a meio, no areal, cada um apoiado na areia com os braços esticados para trás. Estava um calor tolerável. Olhei para a esquerda… não me lembro ao certo deste pormenor, mas vamos dizer que a Graciete estava de olhos cerrados com a cabeça inclinada para trás. Sim, é assim que a vejo. Da sua cara os meus olhos desceram para o seu peito, para a sua cintura… e reparei. “Estás sem o penso anti-concepcional.” “Sim, eu sei” respondeu, abrindo os olhos e olhando para mim. “Esqueci-me de o trazer.” “E quando voltarmos… vais comprar mais?” “Não” e sorriu. E sorrimos, pois acabava de me dizer que estava preparada. Mas a vontade não era tudo o que precisávamos. Algumas complicações fizeram com que o tempo se arrastasse e os meses fossem passando. Passou-se o Verão, passou-se o nosso aniversário em Arouca em Outubro e um teste negativo. E depois chegou aquela Quarta, no mesmo mês. Estava na cama, a Graciete levantou-se, foi ao quarto-de-banho. Com um olho meio aberto, vi que trazia algo na mão embrulhado em papel. “Que é?” perguntei. Mas percebi sem ela dizer. Abandonei a posição deitada, esfreguei os olhos e esperei. À medida que ela fazia o papel deslizar, aparecia uma cruz com uma linha muito ténue. “A linha está ténue… só a outra é que se vê mesmo.” Mas, seria? A Graciete confirmou na caixa e a linha bem que podia ser ténue, nós teríamos tenacidade por ela. “Vamos ser pais?” Um bem-estar inundou-nos, mas metemos um pequeno travão, conscientes de que muitos sonhos ficam pelo caminho no primeiro trimestre. Obviamente, era impossível não dizermos de vez em quando, um ao outro, “Vais ser pai?!” “Vais ser mãe?!” (…) Estava em Lisboa quando houve um primeiro sinal de que algo pudesse estar mal. Cheguei a São João da Madeira, fomos à médica de urgência, mas lá estava ele, ou ela, uma mancha num mar de cinzentos. Tudo bem. Uma semana passou, nova visita, e a ideia da médica de que poderia estar mais pequeno do que era possível. E depois mais uma semana, e depois o “Não tenho boas notícias.” Era uma gravidez não-evolutiva.

in Vago – Do Panamá ao México à Boleia [2019].

A conversa na praia em 2017, o primeiro aborto no mesmo ano.

A nossa condição humana separa-nos de muitas outras pois permite-nos aprender com as experiências dos outros. Não foi assim comigo, neste caso. Foi preciso um espermatozoide meu ter encontrado um óvulo da Graciete e ter-se aguentado aí o tempo suficiente para dar um resultado positivo num teste, para eu perceber por que é que as pessoas não bradam logo as suas gravidezes. Há muito que pode correr mal. E houve muito que assim correu.

Lembro-me de estar em Agra, na Índia, com a Sofia, a Graciete, e a Camille, uma francesa que estava a ficar no mesmo sítio que nós e tinha vindo ver o Taj Mahal connosco. Não me lembro porquê, fomos parar ao lado oposto do templo. Víamo-lo, não muito ao longe, imponente, uns metros depois de um rio sujo. Eu falava acerca de uma realização que tivera recentemente e a Sofia manifestava a sua estupefação. “Isso não, Pedro” dizia, como quem diz que esta minha ideia ia um pouco longe demais. Falava acerca do egocentrismo que é querermos ter um filho nosso quando há tantos filhos sem pai e mãe. É uma teoria que, mesmo hoje, e especialmente quando a discuto com pais e mães, não tem uma recepção excelente. Porém, e estranhamente, eu queria ter um filho. Eu, que tento ver a lógica de tudo e deixar-me levar por ela, via a lógica desta minha proposição, mas rejeitava-a. Eu queria ter um filho meu. Por minha causa. Porque eu queria ter uma experiência. É por isso que todos queremos ter um filho. Porque queremos ter uma experiência. E, na verdade, dentre todas as razões com ainda menos sentido, é a única que é minimamente aceitável. Não faz sentido querermos ter um filho para contribuirmos para o rejuvenescimento da população portuguesa, ou porque a pessoa que amamos quer mesmo ter um, ou porque os nossos pais pedem descendência. Nenhuma dessas razões é uma boa razão se nós não quisermos ter um filho. Se querer ter um filho é uma atitude egocêntrica, a partir do momento em que o decidimos ter, deve continuar assim. Claro que eu queria muito ter os meus genes a dançar com os da Graciete e ver no que resultava, e queria muito que alguém tão bondoso e humano quanto essa minha humana pudesse experienciar aquilo de que me falavam sempre de olhos arregalados, essa experiência que parecia ser a da maternidade. Mas nada faria sentido se eu, se nós, não quisesse, não quiséssemos.

Sou uma pessoa optimista em relação à VIDA, no geral. É-me natural e também considero ser uma abordagem que faz com que tenha uma existência mais feliz. Não porque visualizo algo, e logo isso acontece, não, não acredito nisso. Simplesmente porque, por um lado, sinto-me melhor só de pensar isso. Não gosto de me sentir vazio de expectativa sorridente. Por outro lado, também não é preciso assim tanto para nos sentirmos bem, e se conseguirmos ver isso, percebemos o quão alcançável quase tudo é. Tudo sendo tudo o que importa, que é a harmonia.

Porém, em empreitadas específicas, sou mais cauteloso. É-me natural e também me parece uma boa estratégia. Às vezes gostava de sonhar um pouco mais, como num ou noutro dia pensava, como se fosse mesmo acontecer, “E se eu e o Fábio ganhássemos o concurso da Netflix?” Mas em relação a ter um filho, foi-me mais natural proteger-me. Infelizmente, isso fez com que tivesse estado melhor preparado quando a segunda tentativa correu mal, e depois a terceira. Adorava ter podido dizer: “É pá, não estava muito optimista e errei totalmente, que palerma!”

A quarta vez veio com um grande aviso. A esperança ia-se arrastando um pouco e começava a pensar durante quanto tempo tentaríamos, quantas vezes, e se pararíamos de tentar antes que isso nos começasse a desgastar demais. O peso destas questões adensaram-se em mim à medida que as complicações lentamente se amontoavam. Umas saindo, depois entrando, outras aparecendo mais à frente, ficando. Seria anão? Não, era uma restrição de crescimento placentar. E o arco aórtico? Parece haver uma coartação. E as cavidades do coração? Parecem estar dilatadas… “Ele tem de nascer no São João, lá eles estão melhor preparados…”

Um dia fui ver um estudo – lembro-me que era uma publicação credível, não me lembro qual – e vi que um bebé com aquelas características tinha uma certa probabilidade de não resistir. Vinte a cinquenta por cento. Números pesados, que decidi guardar para mim.

E depois veio a névoa nítida.

No primeiro dia, levei a Graciete ao Hospital de São João. Fomos de manhã. Houve fios, cabos, ritmos cardíacos a serem analisados e aquele entusiasmo e medo de quem está prestes a embarcar numa jornada sem fim mas que tem, ao mesmo tempo, medo que o barco não apareça. Ficámos lá o dia todo, as contrações aparecendo timidamente. Custou-me deixar lá a Graciete. A estrada até casa fazia-me sentir pena dela, e pena de mim próprio, um homem a voltar sozinho esventrando a noite.

A oxitocina é a hormona do amor, dizem. É também a hormona responsável pelo parto em mamíferos. O Noé não podia passar daquele dia, era pequeno demais, os risco avolumavam-se, e então decidiram injetar a Graciete com a droga do amor para ver se o nosso novo amor aparecia mais facilmente. A manhã passou e depois, um homem sozinho ao computador dentro de um centro comercial. A Graciete estava numa sala intermédia onde eu não podia estar e assim ia vendo o tempo a passar olhando para os jovens das faculdades da zona ou os velhos que vinham ali passear. À medida que a noite se abateu, foi-se abatendo sobre mim uma leve preocupação. O entusiasmo descia e a questão aparecia: “Estaria tudo bem?”

Talvez por estar num centro comercial com tantos reformados, comecei a ter pensamentos mais de velho, e um deles foi “Vou buscar o carro para mais perto.” Estava a meio do caminho quando a Graciete me ligou. “Kidus, não vai ser parto normal, vai ser cesariana, anda agora!”

“Isto está a acontecer agora” disse, no dia 16 de Julho de 2016, enquanto via a Graciete caminhar na minha direcção, pelo braço da sua mãe. “Também pensas nisso?” perguntou a minha mãe, como se não me conhecesse, nos segundos que a minha noiva demorou a assomar. Nessa noite, enquanto corria a caminho do meu futuro, ouvi-me dizer o mesmo. “Isto está a acontecer agora.”

“Olhe” chamou o segurança, que já estava avisado que viria um futuro pai, por aí, a correr. Olhei para trás, o dedo colado ao botão do elevador. “Respire” ordenou. Sim, vou respirar. O coração batia forte naquele elevador, e quando cheguei lá acima, fui recebido por uma enfermeira, que me encaminhou para um quarto-de-banho. Entregou-me uma touca, umas calças e uma camisa azul. Abri a porta e fui a caminho dos bips que se ouviam. Entrei numa sala e vi a Graciete deitada de barriga para cima. Sentei-me ao seu lado, do lado de cá de um tecido verdade que se levantava a partir do seu peito. Vários profissionais da saúde do outro lado, duas ou três enfermeiras deste lado. Quando me tentava levantar, para ver alguma coisa, pediam-me para me sentar, porque estava tudo esterilizado, como se o meu simples olhar pudesse conspurcar os seus esforços. Anuí, não queria levantar ondas, queria só estar ali, sentado, a dar a mão à Graciete, enquanto lhe olhava nos olhos, pedindo para relaxar, ao mesmo tempo que saltitava para o olhar das enfermeiras deste lado, como quem olha para os assistentes de bordo durante uma turbulência mais agressiva.

Não sei quanto tempo estive ali. Não pareceu uma eternidade, não pareceu um segundo. Não pareceu uma ilusão, delírio ou má construção do que inundava os meus sentidos. Pareceu, isso sim, que o mundo todo se comprimira para estar ali naquela sala, durante um tempo que ia além do tempo. A Graciete chorou com mais força enquanto, do lado de lá do lençol verde, alguém dizia “Vamos, vamos, é agora”, gritou de dor. Ouvia tubos que pareciam choros e depois um choro que parecia um tubo. Levantei a cabeça e por um segundo, um segundo apenas, o Noé apareceu à nossa frente. Chorava, acho que os olhos estavam fechados, e nós chorámos também, com os olhos abertos a vê-lo desaparecer, rumo à sobrevivência. Uma mão tocou-me no ombro, para eu sair, e sentei-me num corredor por onde passara. Uns metros à minha frente, numa sala com o inoportuno nome de “Sala de reanimação”, uma data de profissionais aglomeravam-se à volta do meu filho. Pensei na ciência, sem a qual aquele bebé de 1720 gramas provavelmente não teria sobrevivido, e pensei no estado social que permite que todos paguemos para que, naquele momento, o meu filho seja o centro do mundo para algumas pessoas além dos pais. Enviei uma mensagem de voz, o meu irmão ligou-me, disse-lhe que o Noé nascera. O coração batia rápido e acelerou quando vi alguém a passar a correr para de onde eu tinha vindo, e num segundo vi uma VIDA toda sem a Graciete. Não, estava tudo bem. Olhei à volta e a realidade de tudo pressionou-me o corpo. Eu estava ali, tudo aquilo estava a acontecer naquele momento.

Está sempre tudo a acontecer em qualquer momento. Mas naquele, eu estava a viver história, e estava consciente disso e não a queria deixar escapar. A minha história. A história do Noé, da Graciete e das pessoas à nossa volta, um pouquinho das pessoas à volta das pessoas à nossa volta, até que a história se perde na nulidade. Mas era a nossa história que acontecia ali, e eu estava ciente disso, e para a agarrar um pouco mais, comecei a dizer, baixinho “Aquela porta é cor-de-rosa.” Comecei a ler os letreiros todos que encontrava, a repeti-los para mim mesmo, na esperança de que assim se aguentassem um pouco mais tempo.

E depois chamaram-me. Abriu-se uma clareira e vi o Noé, uma cara enrugada, com uma boca grande demais, uns olhos a batalhar com a claridade, e um gorro às listas cores-de-rosa e azuis. Disseram que podia tirar uma fotografia e captei-nos numa selfie mal amanhada. Estavas bem, estavas vivo. Ias ficar por ali, descendo uns andares até à neonatologia. Mas estavas bem, estavas vivo. E eu estava bem, quiçá mais vivo que nunca.

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