“Levem a minha casa convosco” diz o Senhor Alberto, ao saber que estamos ali para explorar a região e levar as nossas palavras e imagens para quem não a conhece. Entrega-nos a salvadora garrafa de água e eu reparo que, apesar de estar de máscara, tem um sorriso que lhe rouba os olhos, como se falasse de um segredo que se tivesse combinado não guardar. Tínhamos chegado nessa manhã, quatro pessoas de quatro pontos diferentes encontrados na mesa de musgo dos quatro abades, não para definir o futuro das freguesias, como os párocos no passado o fizeram, mas para definir os seus próprios futuros para os próximos dias.
Começámos na vila que se recusa a ser cidade, a olhar para o Rio Lima, aquele do esquecimento. “Porque é que está ali uma legião de soldados romanos?” pergunto ao Nuno, que nos guia pela terra que adoptou. “Vês uma estátua do lado de lá?
De acordo com a mitologia grega, havia um rio que era o Rio Lethes, e quem bebesse da sua água, ou lhe tocasse, simplesmente, esqueciam-se de tudo. Então, reza a lenda que os romanos quando aqui chegaram pensavam que o Rio Lima pudesse ser o tal Rio do Esquecimento. E o comandante, para provar que não era, atravessou o rio e, do lado de lá, nomeou cada um dos seus soldados… para provar que não se tinha esquecido de nada.” Olho à minha volta. Que pena seria esquecer-me daquilo. Deixámos a Avenida dos Plátanos com as suas dezenas de árvores que viram por ali passar realeza, ditadura e democracia nos seus quase cento e vinte anos e que, sem querer, se tornam num dos emblemas da cidade, e aproximamo-nos doutro dos emblemas, a Ponte Romana, passando pelo chafariz outrora transplantado para o Largo de Camões. Deixamos a artéria fluvial que dá VIDA à vila e entramos pelas arteríolas, passando pelas lojas tradicionais com enchidos à porta, pelos restaurantes de arroz de sarrabulho e pelas pessoas que se passeiam sem pressa, pelo caminho ouvindo as histórias e as lendas que o Nuno nos conta.
Há uma paradoxalidade no orgulho modesto que esta vila tem e sentimo-lo nas pessoas que nos servem um café ou vendem um gelado. “Porque é que se recusam a ser cidade?” penso. “Será da mesma forma que me recuso a ser um homem?” Sim, será isso. Como as placas a falar de cheias de 1909 ou as pontes e torres do século XIV evidenciam o inevitável, também sulcos surgirão na minha cara a apontar a minha idade, e a esperança dos limianos talvez seja a mesma que a minha, de manter a jovialidade apesar do peso dos anos. Eles conseguiram. Conseguirei?
Deixamos a pequena urbe para umas tacadas no campo de golfe e daí entregamo-nos um pouco às águas mais jovens do Rio Labruja na Praia Fluvial do Pé do Negro, um pequeno refúgio do sol castigador. O rio espreme-se entre dois penedos e alivia o calor de jovens que jogam vólei com água pelo peito ou doutros que, sentados na beira com os pés a navegar lentamente, trocam confissões. A água que aí passa volta a encontra-se connosco no dia seguinte, quando desagua no Rio Lima e nos vê, rio acima, no água-arriba construído pelo Caninhas que, com o Senhor Amélio, nos levam de passeio. Solta-se a âncora e soltamo-nos nós também, saltando da embarcação que dantes levava mercadorias, animais e pessoas e que, hoje em dia, se limita a oferecer um pouco de ócio a humanos que se querem esconder um pouco nas águas e na natureza local.
A natureza abraça Ponte de Lima. A natureza é Ponte de Lima. Geralmente a humanida impõe-se à flora, mas ali parecem ter chegado a um acordo, as pessoas misturando-se nos seus tons de verde, ainda que os atravessando de bicicleta, capacete na cabeça em acrobacias que admiro, sentado numa rocha cinzenta, mas a que não me atrevo. Fico-me por uma passeata de kart a pedal no Pé Descalço, onde o António nos diz que gostava de poder proporcionar às crianças uma brincadeira não-estruturada, um relembrar de sensações esquecidas.
Subimos e descemos, comemos em restaurantes urbanos e noutros em colinas um pouco mais perto da sorridente lua. Bebemos vinho verde quiçá banal para a terra mas divino para quem visita. Encapsulámos uns dias num conjunto de freguesias com casas senhoriais que nos convidavam insistentemente para uma visita. E no fim, ao lado do Rio Lima, pergunto-me para onde foi o tempo?
Olho para as águas que vão o mar. E penso… que ironia este rio do esquecimento passar numa vila inesquecível.