Três meses na estrada. Bem, três meses e um dia, para ser mais preciso. Incrível. Surpresas, mutações, reflexões, explosões de consciência, destinos cruzados, sorrisos oferecidos, enrascadas, uma amálgama de experiências, sentimentos e constatações dentro de mim. Não parti para me encontrar, mas que opção tenho perante horas a fio sozinho entregue aos Ventos senão olhar ao redor e tentar encontrar alguma coerência com o que vai cá dentro, com o que aprendi e julguei ser certo? Escrevo do Vale Hunza, talvez o sítio mais belo onde já estive, no Paquistão. Movido pelos medos que nos incutem e a que, sem querer, quase pereci, tinha como objectivo passar por este país de rompante, uma ponte entre o Irão e a Índia. Mas estou aqui há vinte e dois dias. Surpresas. Surpresas nos sorrisos que não param de me desejar as boas-vindas, no calor de uma sociedade que vive debaixo de uma religião diferente da nossa, nunca tão radical quanto se pensa, no que ao mais comum Homem diz respeito. Um abre-olhos como uma estalada na cara. Estou num quarto, sozinho, numa casa anexa à do meu anfitrião. Se saio e dou uns passos à direita, vejo o seu lar, onde agora dormem, na mesma divisão do tamanho de duas mesas de bilhar, cinco pessoas. Como no resto do Paquistão, não há luz nesta casa durante quase metade de cada dia. Numa característica mais particular desta zona, não há água corrente. Parece-me uma família feliz, apesar de tudo, ainda que, naturalmente, eu entenda que eventuais infelicidades, seja de que família for, de que país for, seja algo que às vezes se varre para debaixo do tapete quando há visitas.
Hoje andei por aí, perdido entre as maravilhas deste sítio, e a comparação entre estes dois mundos tão diferentes não me saía da cabeça. Claro que entendo que é mais fácil comparar com o que temos na porta do lado, e tão mais fácil estabelecer comparações com quem está melhor. Gostamos de sentir que podemos ter sempre mais, e na impossibilidade de tal acontecer, gostamos de nos sentir pobrezitos com isto. Acho que é por isso que temos de abrir os olhos. Hoje, sentado na beira de um penhasco a ouvir Nina Simone apreciando a vista, tentava disciplinar-me. “Tenho de dar mais valor ao que tenho”, dizia-me. Sempre mo disse, mas castigame a facilidade que o meu ser tem de se habituar a circunstâncias que para nós são corriqueiras mas que para tanta gente estão perto do luxo. A nossa constatação dos bens que temos, seja de que natureza for, deveria ser intrínseca. Deveria vir já programado, a nossa VIDA seria bem mais fácil. Mas falhando isto, porque não nos forçarmos a ver o esquema maior, e perceber que a grande maioria de nós teve uma sorte incrível de nascer num país europeu? Portugal está na fossa, em vários domínios, é impossível negar. E se calhar o pessoal não pode comprar aquele carro com que sempre sonhou. Se calhar o pessoal tem de ter umas sapatilhas da Remate em vez da Nike. Se calhar o pessoal até pode nem ter carro. Mas o pessoal tem muito mais do que imagina. Não posso estar assim tão enganado, e não falo de barriga cheia, porque falo de necessidades, não falo das coisas supérfluas de que posso beneficiar particularmente. A nossa felicidade é algo que se constrói de dentro para fora, não de fora para dentro. Ou assim o deveria ser. Acho que às vezes confundimos a felicidade em si, com a percepção da mesma. Baralhamos os sub-objectivos e trocamos as prioridades, focando-nos naquilo que se espera de nós, naquilo que se espera que tenhamos, que façamos, que sejamos. Tudo isto em vez de permitir que entre um pouco de luz carregando consigo a clarividência que nos permita ver mais além.
Oscilamos entre extremos. Ou ficamos obcecados com aquilo que não temos e por isso nos sentimos incompletos, ou com aquilo que temos, e injectamo-lo directamente no nosso coração, deixando que fale por nós, e nos defina. É tudo uma questão de escolhas, no final de contas. Podemos ver a mesma situação de várias perspectivas. Se à partida escolhermos ver as coisas de uma forma que nos deite abaixo, as instruções para tal alcançar estão acima. Se, por outro lado, escolhermos ver as coisas de uma forma que nos aligeire o ser, as instruções para tal alcançar estão acima.
12h12, 4ª, 27 de Abril de 2011
Vale Hunza, Paquistão